Difícil escrever sobre este filme. Não é do tipo que tem uma
história pronta e personagens de fácil compreensão. Acredito que assim como
qualquer obra de arte, "Praia do Futuro" poderá significar coisas
diferentes para outras pessoas, cada um verá algo, sentirá algo, não há uma
única maneira de encará-lo e compreendê-lo, portanto, naturalmente, uns poderão
amá-lo, outros, odiá-lo, consequência desta trama que é tão subjetiva, tão
ampla, tão aberta. Escrevo aqui, o que vi, e só digo de antemão, fiquei
extasiado.
E como era possível de se esperar, visto que estamos falando
de um filme de Karim Ainouz, trata-se de um longa que te propõe uma trama
forte, que não te poupa de nada que faça parte daquele universo, que não possui
nenhum tipo de filtro, mas que também recompensa aqueles que estiverem
dispostos a acompanhar a sua trajetória sem preconceitos.
A trama é dividida em três capítulos, O Abraço do Afogado,
Um Herói Partido Ao Meio e Um Fantasma Que Fala Alemão. Nome sempre citado
entre os mais importantes do cinema brasileiro, Karim Ainouz está de volta com
o seu filme mais sofisticado. Caracterizado por seu cinema cru, de difícil
digestão, Praia do Futuro representa um amadurecimento do diretor, que
permanece com a sua linha naturalista ao extremo, sem pudores, mas com uma
consciência maior do que e como mostrar.
Praia do Futuro começa com o dia em que o salva-vidas Donato
(Moura) perde para o mar pela primeira vez. Na tentativa de socorrer dois
turistas alemães, apenas um sobrevive e, assim, começa a ligação do
protagonista com o alemão Konrad (Schick), que faz Donato trocar Fortaleza por
Berlim. Donato se muda para a cidade de inverno cinza e frio, longe do mar
cearense e também de Ayrton (Barbosa), seu irmão mais novo.
Donato abandona completamente o passado para se adaptar e
viver uma vida em que sua personalidade não esteja atrelada ao que os outros
projetam nele. Praia do Futuro mostra de maneira sensível e contundente a
liberdade que a mudança proporciona. E a
fotografia que contrasta as cores do Nordeste brasileiro com a frieza do clima
alemão também dá conta dessa transformação.
Muito do sucesso do filme se deve aos seus personagens,
todos extremamente bem construídos com seus dilemas e temores. Donato que pode
até vender uma imagem segura no início do filme, parece desde sempre
insatisfeito, como se alguma coisa estivesse faltando na sua vida. Aliás,
pertencimento é uma ótima palavra para definir o que se passa na cabeça de
Donato, pois na maior parte do tempo ele não parece saber dizer a que lugar
pertence. Pertence a água? Pertence a praia? Pertence a Berlim? Difícil dizer!
A fuga e o abandono, temas que Aïnouz aperfeiçoou na sua
carreira sob uma perspectiva feminina, em O Céu de Suely e Abismo Prateado,
ganham aqui contornos mais pessoais e ajudam a mostrar a vulnerabilidade dos
personagens, e, de certa forma, humanizam o salva-vidas, visto pelo irmão mais
novo como um super-herói.
Uma marca do roteiro são as inúmeras elipses, algumas bem
radicais, que pontuam todo o filme. Ao mesmo tempo em que elas abrem para o
espectador a possibilidade dele imaginar os acontecimentos suprimidos, também
provocam pequenos choques pelas quebras inusitadas das expectativas usuais .
Lidando com o tema da homossexualidade sem sentir a
necessidade de incluir passagens que discutam o preconceito, Praia do Futuro
traz indivíduos bem resolvidos quanto à própria orientação sexual. Por outro lado, aos poucos o filme leva o
espectador a perceber de maneira sutil que talvez o personagem de Wagner Moura
não experimentasse exatamente a paz de espírito que buscava demonstrar, o que
se torna, de certa forma, motor da narrativa. Ainda que se mostre feliz por
estar com Konrad, aqui e ali notamos a inquietação do protagonista.
Retratando a humanidade e o caráter de Donato através de
pequenos momentos, Wagner Moura ainda exibe uma integridade artística admirável
ao não hesitar em se entregar às sequências de sexo, que são fundamentais para
que percebamos a magnitude da atração entre os dois amantes. A mesma
integridade, claro, vale para Clemens Schick, que ilustra bem o afeto de Konrad
pelo outro e sua dor diante dos obstáculos que enfrentam. Jesuíta Barbosa é uma
revelação, o filme alcança seu melhor momento quando o ator entra em cena. O encontro
entre os dois irmãos é memorável, e a tensão e comoção que existe no olhar dos
dois atores é a prova do quanto compreenderam seus personagens e quanto deram o
melhor por eles.
Mais do qualquer coisa é um filme de sensações, onde as
imagens e os sons causam impacto, tristeza, emoção, muito sentimento, é muito humano ao relatar as
fragilidades de seus personagens, é complexo, é profundo. É também um filme
introspectivo, silencioso, intimista, melancólico, é delicado ao mesmo tempo em
que é puro caos, é seco ao mesmo tempo em que é poético, fala de coragem
através daqueles que sentem medo, fala de amor através daqueles que são brutos,
fala de ira através daqueles que esperam por um abraço. Vi uma obra como
poucas, vi um cinema nacional como quase nunca tive a oportunidade de ver e
sentir. Um trabalho de arte, um filme a ser lembrado.