A trilogia das cores é acaso, é
amizade entre cinema e espectador. Foi um dos projetos mais ambiciosos de
Krzysztof Kieslowski, feito durante uma época em que a Europa passava por
grande transformação com o fim da URSS, o intenso desejo de mudança e a idéia
da União Européia. Mesmo assim, o filme consegue se conectar com qualquer
pessoa, independente de onde essa viva, pois, nesse caso, sentimentos e valores
organizados por Kieslowski são e sempre serão universais.
Depois do ensaio metafísico "A dupla vida de Verônica", o polonês Krzysztof Kieslowski deixou meio mundo a seus pés com um projeto ambicioso e ao mesmo tempo absolutamente simples. A sua "Trilogia das Cores" surgiu em meados dos anos 90 como um grito quase silencioso de que ainda havia lugar para a poesia, a beleza e a emoção no cinema. Dominada pelo frenético e muitas vezes descartável cinema americano, a década de 90 experimentou um novo modelo que não só reabilitou o cinema europeu, mas também provou que o realismo, o drama humano e a sensibilidade do artista ainda podiam falar mais alto do que filmes baseados em orçamentos milionários e toneladas de tecnologias. Inspirada não só nas cores da bandeira da França, mas também nos lemas da Revolução Francesa, a sua trilogia podia ser vista como um ensaio, um reflexo da visão pessoal do cineasta polonês com relação aos processos da unificação européia da época, tanto econômica quanto política. Por isso, deve ser vista na íntegra, e na sequência original, em que, como uma peça em três atos aparentemente distintos, mas que se complementam no fim, os três filmes apresentam personagens que protagonizam cada um dos filmes individualmente, mas interagem ao longo da trilogia, até o final arrebatador, em que serão reunidos por conta de uma tragédia com implicações simbólicas e até mesmo como metáfora da situação política da Europa refletida pela ótica do próprio Kieslowski. Diretor de dramas pesados e intimistas, Kieslowiski adotou uma nova filosofia a partir do "Decálogo" no final dos anos 80, e a sua trilogia de cores representa o amadurecimento de seu cinema, a combinação de poesia e sensibilidade e o uso de personagens comuns como símbolos universais.
Em "A
Liberdade é Azul", o clima predominante é o de tragédia. Bela modelo tenta
o suicídio após a morte do marido e da filha num acidente de carro. Frustrada
na sua tentativa, ela redescobre um novo sentido para a vida e leva adiante o
projeto do marido, que era compositor: um concerto sinfônico comemorativo da
unificação da Europa. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, o filme aborda a
tragédia pessoal para criar um roteiro envolvente, carregado de implicações
existenciais e emoções intensas. O ritmo lento, aparentemente pesado do diretor
acentua de tal forma o drama da personagem que o azul predominante na
fotografia se torna reflexo da sua
tristeza, que beira a depressão, a solidão e a amargura. Permite também à atriz
Juliette Binoche uma atuação arrebatadora. A trilha sonora é uma das maiores
composições já feitas pelo músico Zbigniew Preisner.
Cena do filme: "A Liberdade é Azul"
Em "A
Igualdade é Branca", os desígnios do coração movem os desejos de vingança
de um humilde polonês que volta à terra natal numa mala de viagem, enriquece e
arma um plano sofisticado para se vingar da esposa, que o humilhou em Paris.
Mergulhando fundo na alma humana, nos sentimentos de vingança e paixão, o
cineasta constrói um conto de fadas às avessas, cínico e até mesmo cruel quando
explora os sentimentos mais recônditos do ser humano, frutos do desprezo e da
traição que experimentam. Tanto quanto os desejos de vingança do cabeleireiro
que se torna milionário graças a métodos ilícitos, a direção sombria de
Kieslowski constrói um filme seco, tão árido na emoção quanto as paisagens
geladas de Varsóvia, local onde se passa a história. O frio da paisagem e a frieza
dos personagens emprestam o tom à fotografia, caracterizando o vazio e o
pessimismo, e a noção de que os fins justificam os meios. A igualdade de
direitos do cidadão, segundo a visão de Kieslowiski, assume ares sombrios e
cínicos.
Cena do filme: "A Igualdade é Branca"
Em "A
Fraternidade é Vermelha", Kieslowiski surpreende já no início do filme,
usando de efeitos especiais para mostrar, através dos cabos telefônicos, o
trajeto de uma ligação que esbarra num telefone ocupado. É a dificuldade de
comunicação entre os seres humanos em nossa época, simbolizada no sinal de
ocupado de um telefone, mas também refletido no relacionamento que surge entre
uma solitária modelo que vive em Genebra e um juiz aposentado e desiludido que
vive recluso em casa, espionando os vizinhos través de escutas telefônicas.
Incapazes de estabelecer uma comunicação a princípio, a insistência dela acaba,
aos poucos, transformando a visão dele sobre si próprio, a vida e as pessoas à
sua volta. A fraternidade, segundo Kieslowski, está no poder que cada ser
humano tem de interferir na vida de seu próximo através da co-existência, do
sentido de agir ou de não agir, na cumplicidade do simples ato de existir. O
vermelho, mais presente do que o azul e o branco nos filmes anteriores, é a
chama capaz de reacender a esperança diante de um novo tempo, simbolizado na
cadela grávida e nos personagens que sobrevivem a um naufrágio.
Cena do filme: "A Fraternidade é Vermelha"
A proposta
estética de Kieslowski é apresentar uma trilogia das cores, na qual cada uma
delas esta ligada a um estado de espírito, ele busca ainda discutir como esse
lema de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” se apresenta no final do século
XX. A proposta estética fica nítida, pois em cada filme uma das três cores é
predominante em relação às outras, como se pode notar principalmente na
fotografia e na direção de arte. Das três cores: o azul é a
tristeza; o branco é desconcerto do mundo e o vermelho é a relação do eu com o
outro, portanto, há o conflito com os três lemas da contemporaneidade, não há
liberdade, igualdade e fraternidade.
Nos três filmes,
as personagens terão as suas vidas transformadas por efeito do acaso e entrarão
em conflitos correlacionados com os temas/ lemas de cada cor, no caso de Julie,
que acredita estar se libertando, mas, o marido ao morrer deixa uma opera
inacabada, obra encomendada pelo parlamento europeu, se vê refém da música, o
som está dentro dela. Carol quer a igualdade na vingança para com a sua mulher
e Valentine vê todos os seus valores morais decaírem quando resolve adentrar no
mundo do Juiz, e uma das coisas mais interessante dos três filmes, as três
histórias coexistem no mesmo tempo, vemos personagens dos filmes transitarem
entre si, coexistem num mesmo espaço, mas não se relacionam, existem e não
existem ao mesmo tempo.
Kieslowski organiza o acaso, cada
mínimo detalhe nos filmes se torna importante para a compreensão e o diálogo
entre o espectador e a obra. Os elementos são sutis e o diretor se comunica com
seu público de forma subjetiva através do uso freqüente de closes. Como, por
exemplo, no primeiro filme 'A liberdade é azul', em um dos closes a personagem
se encontra em um café, logo após conversar com o homem que a ama. Assim que
ele a deixa, ela observa um personagem na rua e logo em seguida vemos um close
em que delicadamente ela mergulha um cubo de açúcar em seu café e esse aos
poucos vai penetrando o cubo fazendo um longo caminho até que seja
completamente tomado.
Cena do filme: "A Liberdade é Azul"
Seria a liberdade algo trágico? A igualdade uma comédia? A fraternidade inexistente? Perguntas com inúmeras respostas, a trilogia nos permite significações variadas.